Chegámos ao novo camp de Mashatu já de noite, sem percepção
alguma do tipo de paisagem que nos rodeia. Nem sequer conseguimos perceber a
orientação do camp completamente engolido pela vegetação e sob uma densa copa
de árvores enormes que reduz o crepúsculo a uma mão cheia de estrelas. A
curiosidade é enorme sobre o que iremos encontrar de manhã quando acordarmos.
Não era suposto termos chegado tão tarde mas tivemos de parar pelo caminho para
um dos alemães ir ao Médico fazer a despistagem da Malária. Inconclusivo. Pela
via das dúvidas, prescreveram-lhe uns medicamentos e seguimos viagem.
Atravessámos a fronteira só ao final do dia, ainda com os últimos raios de sol
a dourar o icónico Limpopo. Tal como em muitas fronteiras por este mundo fora,
é apenas um rio… mas parece que tudo muda.
Seguimos rumo a norte por uma estrada de terra pelo Botswana adentro onde,
contrariamente a África do Sul, não há vedações, casas, gentes, pontes ou
povoações. O único vestígio de civilização é aliás esta estrada de terra batida
recta e tremida que, de dia imagino que se estenderia até ao horizonte, mas
nesta noite sem lua se estende apenas até à distância que as luzes do jipe
alcançam. E nada mais.
Parece até que estamos à deriva num enorme vazio qual oceano, confiando apenas
na orientação e destreza do condutor, que na verdade tem um trabalho muito
facilitado, pois “não há que enganar, é sempre em frente!”
Perco a noção da distância nestas estradas de terra intermináveis,
especialmente sem ter lua sequer para iluminar a estrada ou o horizonte. E sem
combinarmos, começamos todos a apontar às estrelas tentando identificar as
constelações que aprendemos recentemente em género de revisão de matéria para o
teste. Como não podia deixar de ser, aqui na terra das coisas ao contrário,
acha-se o Sul para navegar. Não é fácil como aí, onde apenas uma única estrela
aponta o Norte. Aqui encontram-se intersecções de linhas imaginárias entre as
Pointers da Southern Cross e Alfa e Beta Centauri. Apenas na certeza que
viajamos em direção a Norte, navegamos por cerca de 2 horas e é impressionante
como à medida que avançamos, parece que a noite vai ganhando vida. Os curtos 50
metros de luz dos faróis vão revelando todo o tipo de animais que ainda não
tínhamos visto até agora. Começo a perceber porque lhe chamam “The wild
Botswana”… Aliás, todo o país é uma enorme área protegida em regime de
concessões, e tido como o maior exemplo de conservação e vida selvagem em
África.
O piso começa a ficar mais duro e irregular, com algum relevo até. E é então
que chegamos a um mar de areia, como que um extenso areal de praia. Surreal.
Completamente inesperado e nada daquilo faz sentido. Com a maior descontração,
o condutor salta do veículo para ligar a tração 4×4 nas rodas do velhinho Land
Cruiser. Seguimos pelo areal até encontrarmos novamente terra firme e percebo
que tínhamos acabado de atravessar um rio! Completamente seco. Seria o Limpopo?
Não faz sentido… Enfim, “amanhã ficarei a saber.”
Pouco depois chegamos finalmente ao camp onde fomos calorosamente recebidos
pelos instrutores e staff. Cansados, jantamos num silêncio invulgar como que
oprimidos pela escuridão da noite e sovados da viagem.
Acordo no dia seguinte ainda sem claridade e sem saber as horas mas os sons la
de fora dizem-me que são cerca de 4:00 da manhã. Curioso como sem dar por isso,
esta imersão no bush já me ensinou a ler alguns sinais. Há animais,
especialmente pássaros que começam a cantar a determinadas horas. E aqui em
Mashatu voltou a cacofonia de sons de todos os tipos mas que já não me tira o
sono. Percebo então o que me fez acordar… um barulho medonho que arrepia de
aterrador. Um som gutural violento que me faz vasculhar mentalmente todos os
registos de sons que aprendi até agora. São só babuínos… Quem conhece, sabe o
respeito que este som impõe. A vontade aperta mas posso aguentar mais um pouco
sem ir a wc… Os barulhos continuam mas desta vez estalam ramos bem perto,
algures entre as tendas. Será que mais alguém também estará acordado? Fito o
exterior através da rede mosquiteira da tenda, na esperança que os meus olhos
se habituem à escuridão e na expectativa de perceber o que anda a partir os
ramos das árvores entre as tendas. Certamente são os babuínos a fazer
“macacadas”, julgo eu. E enquanto os olhos vão tentando decifrar o que se passa
lá fora, surgem formas escuras gigantes mesmo à minha frente a 2 passos da
tenda. É um elefante! A cirandar entre as tendas no maior dos silêncios não
fosse ele andar a partir ramos para cear sei lá o quê! Perplexo e ciente da
minha pequenez, como nunca dantes, permaneço estático e deitado numa tenda de
lona a ver passar pernas e trombas à minha frente. A distância é tão curta que
é só mesmo isso que vejo!
Impressionante como estas criaturas de toneladas se movimentam em absoluto
silêncio. Impossível sair da tenda. É uma manada incontável de elefantes que se
passeia por entre as tendas como se fizesse questão de nos recordar que são
eles os senhores deste lugar. Sem pretender disputar esse estatuto,
simplesmente espero e observo. Deve ter passado meia hora e os gigantes já vão
longe, a analisar pelos barulhos.
O dia começa com mais uma chávena de café e um biscoito. Há 40 dias que nada
muda neste aspecto. Dava o meu dedo mindinho por uma tosta mista.
À medida que a claridade começa a desenhar as primeiras formas, cedo percebo
que estou no meio de árvores enormes, mesmo à beira de um areal, que mais me
parece estar num oásis. Impressionante. O camp fica numa das margens do
Motloutse, um enorme rio seco, que na semana passada transbordava de água e
hoje apenas luta para conservar alguns charcos onde todos os tipos de animais
vêm beber a água lamacenta.
Este lugar tem algo especial mas não consigo perceber o quê. Em breve ficarei a
sabê-lo.