Atravessei meia África para chegar até aqui. Poderia ser o
Okavango, as Cataratas Vitória ou uma qualquer das Sete Maravilhas dignas de
uma odisseia mas não… o destino era mesmo esta aldeia encurralada entre os
vulcões de Virunga e a Floresta Impenetrável de Bwindi. É fácil perceber aliás
como esta floresta ganhou o seu nome!
Pelo caminho, trocamos de hemisfério e trocamos de roupa… os quase 3000m de
altitude fazem esquecer que estou a escassos passos do Equador.
Pelo caminho, cruzamo-nos com alguns jipes brancos das UN escoltados por carros
do exército. Cenário de filme. Um claro sinal que esta zona está longe de ser
um local tranquilo ou um concorrido destino turístico.
Pelo caminho, à nossa passagem as pessoas pasmam, acenam, sorriem, gritam
“Mzungu”, mostram tudo menos indiferença! Os carros são raros e sinto-me um ser
exótico por estas partes.
Chegamos finalmente a Rubuguri… Uma terra de abundância, mas onde todos pouco
têm.
Não existe uma única mercearia pois cada um tem a sua parcela de terra de onde
tira o que precisa e troca ou vende o que sobeja. Tudo o resto que a terra não
dá é supérfluo.
Aqui em volta, o que antes fora floresta, é agora uma colina de retalhos em
tons de verde e castanho cultivados vertiginosamente desde o fundo do vale
pantanoso até ao pico nublado do morro. Sem socalcos nem trilhos, trazer uma
saca de batatas lá de cima, é por demais uma tarefa laboriosa apenas guiada por
obstinação ou sobrevivência.
Um lugar onde metade da população tem SIDA, aqui vista tranquilamente como uma
simples condição adquirida num jogo de probabilística e onde o Ébola por vezes
também gosta de tentar a sua sorte.
Estranha terra esta que, por este prisma, poderia servir de ilustração a um dos
Cantos do Inferno de Dantes mas na realidade é tudo menos isso: as pessoas aqui
são singularmente felizes. Talvez por reduzirem absolutamente tudo a uma
simplicidade desafiadora de divagações filosóficas. Até o próprio tempo tem
aqui uma concepção diferente e simplista! As horas aqui começam ao
nascer-do-sol, onde a noite é apenas noite e “mais logo” também é apenas isso,
seja lá quando for. Invariavelmente, quando combinamos algo, perguntam: “Mzungu
time or Uganda time?” Por vezes
inconsequente pois a maioria das pessoas não tem relógio e, como descobri
ontem, os que têm, apenas usam por ostentação. Pontualidade é uma condição que
vai perdendo importância dia após dia e, tal como tudo, assim se vai
simplificando.
Que nem aldeia de Asterix, esta aldeia de irredutíveis ugandeses onde existe o
ferreiro, o carpinteiro, o carregador de telemóveis, o condutor de moto-taxi, a
costureira, o lenhador free-lancer, o músico… profissões muito bem definidas
e sem possibilidade de concorrência, a contrastar com as 50 vendedoras de
couves e batatas nos mercados de 6a feira.
Existem dois cafés na aldeia, um deles dizem-me que é “chique”. Eu não lhes
vejo diferença, ambos vendem a mesma cerveja quente, ambos têm uma mesa de
bilhar já sem pano, ambos vendem as mesmas alcagoitas, ambos têm exactamente as
mesmas pinturas na parede… a diferença deve ser só mesmo nas casas de banho
mas não me atrevo a desvendar.
A contrastar com tudo isto, as edificações de algumas das missões de
voluntariado aqui presentes. De Evangelistas, Baptistas, Metodistas,
Pentecostais, Católicos a Protestantes, parece que cada ramo da Igreja decidiu
aqui montar a sua sucursal… o negócio da evangelização aqui vai de vento em
poupa. Cada qual tem a sua igreja, escola primária, centro comunitário, terras
agrícolas e residências de fazer inveja a muitos resorts… Crucifiquem-me mas diria que faz lembrar Desmond Tutu :”When the missionaries came to
Africa they had the Bible and we had the land. They said ‘Let us pray.’ We
closed our eyes. When we opened them we had the Bible and they had the land.”
É domingo, o grande dia, onde cada um veste o seu único fato domingueiro para
ir à missa e, sem grandes pressas, cada qual se encaminha para a sua igreja.
Como que num concerto orquestrado, os cantos religiosos de cada Igreja
degladiam-se pelo vale abaixo, num espectáculo memorável.
Findo as celebrações dominicais e após almoço, a população começa a juntar-se
no campo da bola, aguardando o importante jogo Rubuguri Vs (esqueci-me do nome
mas é uma aldeia próxima, rival importante que deve uma desforra). Footsteps
patrocina a equipa local com equipamentos e uma bola que nos lembrámos de
comprar ontem no supermercado a caminho. Tal como na Escola Primária, ser
aquele que traz a bola dá-me índices de popularidade de fazer inveja ao
Presidente Marcelo. Dou comigo rodeado de crianças que me olham
estarrecidamente, ignorando o jogo que começou.
Para satisfação da curiosidade de alguns e júbilo de todos, percebem que sou
Português e como tal assumem automaticamente que só posso ser um craque de
futebol, da mesma linhagem que Figo ou Cristiano Ronaldo. Perguntam-me “You
play? What position?” Respondo imediatamente “Seven!”. Arrependo-me logo a
seguir quando percebo que mandam sair o jogador número 7 do campo. Meio
contrariado, sai, tira a camisola e ma entrega. Entre uma multidão rejubilante
e um coro de aplausos não tenho outro remédio senão vesti-la e entrar em campo!
Num campo ervado com uma inclinação que faz a bola voltar para trás sozinha, um
charco enlameado com vida própria a meio,
bosta de vaca por todo o lado, 11 Drogbas no lado adversário, penso pra
mim mesmo: “se não partir um pé, já é bom…”.
Dos 22 jogadores em campo, 4 deles jogam descalços mas um deles com caneleiras
e outro com uma fita na cabeça que lhe parece inspirar confiança suficiente
para enfrentar pitons em riste. Reparo também que um outro tem calçados sapatos
de ciclismo!! Claramente confundiu os encaixes com pitons… Tudo isto é
hilariante.
Joguei cerca de 30 minutos. Escorreguei tantas vezes quantas toquei na bola.
Resultado final: empatámos. Mas eu ganhei! Hoje ganhei tanto…